Quando uma empresa tem dívidas excessivas e precisa reestruturá-las, os
credores muitas vezes terminam por trocar obrigações ou empréstimos por
ações. Eles trocam o pagamento garantido de um investimento de renda fixa
por uma participação societária cujo retorno depende dos resultados futuros
da empresa. Em outras palavras, os investidores aceitam compartilhar os
riscos. Seria possível aplicar um mecanismo semelhante na reestruturação da
dívida de uma nação soberana, vinculando os pagamentos a seu desempenho
econômico no futuro?
Um novo estudo
do FMI examina possíveis instrumentos inovadores de dívida soberana que
poderiam fazer as duas coisas ao mesmo tempo: facilitar um acordo entre
credores e devedores sobre como reestruturar a dívida compartilhando parte
do potencial de alta e tornar a carteira de dívida de um país mais
resiliente a choques futuros.
O enorme choque econômico causado pela COVID-19 encontrou cerca da metade dos países de baixa renda e diversos mercados emergentes já enfrentando ou com risco elevado de enfrentar uma crise de endividamento. E espera-se uma elevação dos níveis da dívida soberana em relação às estimativas anteriores à pandemia, com aumentos de cerca de 17% do PIB nas economias avançadas, 12% nos mercados emergentes e 8% nos países de baixa renda. A crise da COVID-19 trouxe também um período de grande incerteza macroeconômica. Nesta situação, as perspectivas da capacidade corrente de um país honrar o serviço de sua dívida são mais incertas do que em qualquer outra conjuntura, tornando os credores potencialmente menos dispostos a aceitar uma redução permanente em seus créditos.
Negociações prolongadas, falta de acesso ao mercado e incerteza elevada durante uma reestruturação podem, por um longo tempo, privar as nações dos recursos de que tanto precisam, reduzindo os gastos e investimentos prioritários necessários para que a economia cresça e o país consiga honrar o serviço de sua dívida. Ao procurar evitar essa espiral descendente, alguns governos podem ser tentados a aceitar condições desfavoráveis no processo de reestruturação que terminam por acarretar os mesmos problemas após um intervalo muito curto.
Plano de contingência
A pandemia pode ser a força catalisadora da inovação há muito necessária no mercado de dívidas soberanas e que contribuiria para agilizar e simplificar as reestruturações, além de ajudar a evitá-las no futuro.
Instrumentos de dívida que ajustassem o pagamento aos credores de acordo com (ou “contingentes a”) a saúde futura do país — medida pelo PIB, pelas exportações ou pelos preços das commodities — poderiam ajudar a romper esse ciclo negativo. Em uma desaceleração econômica, esses “instrumentos de dívida contingentes à situação futura” manteriam o alívio na dívida que o país obteve na reestruturação. Em uma recuperação, eles proporcionariam automaticamente uma compensação adicional aos credores, à medida que a capacidade de pagamento do país melhorasse.
Esse compromisso possibilitaria ao país obter um acordo sobre uma maior redução imediata da carga de sua dívida, tornando-a mais sustentável no futuro, sobretudo porque o país recupera mais rapidamente o acesso ao mercado. Outro elemento da concepção de um instrumento simétrico que ofereça um alívio maior em cenários negativos poderia facilitar um acordo quanto a uma base de referência mais favorável, proporcionando recuperação de valor para os investidores e proteção para o país em caso de desaceleração.
Dificuldades de implementação
Apesar da atratividade que os instrumentos de dívida contingentes apresentam nesses tempos incertos, as dificuldades de implementação persistem há muito tempo e é necessário que sua concepção incorpore as lições obtidas com a experiência. Historicamente, os credores têm descartado esses instrumentos devido a sua natureza não testada, aos perfis de risco idiossincráticos e à consequente falta de liquidez de negociação. Tais preocupações podem ser abordadas vinculando estreitamente as variáveis de situação — como o crescimento do PIB ou o preço das commodities — à capacidade de pagamento dos devedores e assegurando que a mensuração dessas variáveis seja protegida contra a manipulação de dados.
A utilização mais ampla e a padronização dos termos permitiram aos investidores entender melhor os contratos contingentes à situação futura, proporcionariam uma formação de preços melhor e estimulariam a negociação no mercado secundário. Para abordar as preocupações dos tomadores, a fórmula de pagamento deve ser transparente e oferecer alívio contracíclico e, ao mesmo tempo, limitar os pagamentos excessivos.
Seguro contra furacões
As reestruturações também podem aumentar a resiliência da carteira de dívida de um país com a inclusão de cláusulas semelhantes a seguros, que proporcionem alívio em caso de choques, como furacões e outros desastres naturais. Os credores têm concordado em fornecer a alguns países do Caribe um seguro contra furacões na forma de suspensão dos juros e prorrogação dos vencimentos. Cláusulas como essa melhoram a capacidade de pagamento de um país em tempos de crise, beneficiando a ambos os lados. Uma reestruturação oferece uma possibilidade única de trocar todo o estoque de dívida por novos títulos que contenham esses mecanismos, mantendo todos os credores em condições de igualdade.
Uma meta ainda mais ambiciosa seria o desenvolvimento de instrumentos que previssem o congelamento automático da dívida em caso de uma crise global (como a atual pandemia), ajudando os países em desenvolvimento a enfrentar choques inesperados de grande magnitude. Contudo, continua a ser difícil definir os eventos precisos de acionamento. Uma possibilidade seria vincular o futuro congelamento da dívida do setor privado ao congelamento da dívida do setor público, já que esse seria um indício apropriado da gravidade da crise.
Os instrumentos de dívida contingentes à situação futura podem ser úteis em determinadas situações, mas não são uma panaceia para as dificuldades inerentes à restruturação da dívida soberana. Como detalhado em outro estudo recente sobre o fortalecimento da arquitetura da dívida, são necessárias outras reformas abrangentes. Otimizar a concepção dos instrumentos contingentes à luz da experiência passada permite que eles desempenhem um papel de destaque para facilitar reestruturações de dívida mais rápidas e menos dispendiosas e, ao mesmo tempo, aumenta a resiliência dos países a choques futuros. É chegado o momento de vencer este desafio.
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Peter Breuer é chefe da Divisão de Dívida e Mercados de Capital no Departamento de Mercados Monetários e de Capitais, onde supervisiona uma equipe que analisa os riscos da dívida soberana e presta assessoria nas áreas de gestão da dívida soberana e desenvolvimento dos mercados de capitais locais. Anteriormente, foi um dos líderes de uma equipe que analisa os riscos para a estabilidade financeira mundial e elabora o relatório que trata dessa questão (Global Financial Stability Report). Liderou ou coliderou as missões de Avaliação da Estabilidade do Setor Financeiro dos Estados Unidos, de Luxemburgo e da Finlândia. Foi Representante Residente do FMI na Irlanda durante o programa do país com o FMI e a União Europeia em 2011‑14. Em cargos anteriores, analisou uma ampla gama de temas nacionais e de políticas. Possui doutorado e mestrado pela Universidade Brown, mestrado pela London School of Economics e graduação pelo Vassar College.
Charles Cohen é Subchefe da Divisão de Dívida e Mercados de Capital no Departamento de Mercados Monetários e de Capitais. Ingressou no FMI em 2017, concentrando sua atuação em questões ligadas a mercados da dívida e estabilidade financeira. Sua experiência anterior inclui uma participação no Conselho de Supervisão da Estabilidade Financeira do Tesouro norte-americano, bem como uma passagem pela Bain Capital Credit, na área de gestão de carteiras da dívida corporativa e soberana, e pelo Boston Consulting Group. Tem ampla experiência nos setores público e privado em matéria de análise dos mercados financeiros, questões de regulamentação e políticas de estabilidade financeira. Doutorou-se em Economia pela Universidade de Harvard, com mestrado e graduação em Matemática pela Universidade de Chicago e Universidade de Stanford.