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As moedas públicas e privadas podem coexistir na era digital

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Valorizamos a inovação e a diversidade, o que também se aplica ao dinheiro. Podemos, no mesmo dia, efetuar pagamentos passando um cartão, aproximando um celular, ou clicando com um mouse. Ou podemos usar notas e moedas, embora em muitos países isso seja cada vez mais raro.

O mundo de hoje é caracterizado por um sistema monetário dual, envolvendo dinheiro emitido por entidades privadas – bancos de todos os tipos, empresas de telecomunicações ou serviços de pagamento especializados – sobre um alicerce formado por dinheiro emitido por entidades públicas – os bancos centrais. Apesar de não ser perfeito, esse sistema apresenta vantagens significativas: o setor privado oferece inovação e diversidade de produtos, enquanto o setor público assegura a estabilidade e a eficiência.

Esses objetivos – por um lado, inovação e diversidade; por outro, estabilidade e eficiência – estão interligados. Em geral, quanto maior um, menor o outro. Os países – e especialmente os bancos centrais – enfrentam um dilema: até que ponto vale a pena confiar no setor privado, em vez de buscar inovações próprias? Muito depende das preferências, da tecnologia disponível e da eficiência da regulamentação.

Assim, quando surge uma nova tecnologia, é natural indagar como será a evolução do sistema monetário dual de hoje. Se o dinheiro digitalizado – a chamada moeda digital dos bancos centrais – se tornar realidade, ele expulsará a moeda emitida pelo setor privado ou deixará que ela prospere? A primeira opção é sempre uma possibilidade, como consequência de normas mais rígidas. A nosso ver, a segunda opção também é possível, ao aplicarmos a mesma lógica do sistema monetário dual da atualidade. Um dado importante: os bancos centrais não são forçados a escolher entre oferecer sua própria moeda digital ou incentivar o setor privado a lançar variantes digitais. Ambas as opções podem coincidir e se complementar – desde que, por exemplo, o banco central tome certas decisões na fase de projeto e atualize seus quadros regulatórios.

Coexistência pública-privada

Pode parecer estranho considerar que o dinheiro emitido por entes privados e públicos tenha coexistido ao longo da história. Por que o dinheiro privado – mais inovador, conveniente, fácil de usar e adaptável – não ocupou todo esse espaço?

A resposta pode ser encontrada numa relação simbiótica fundamental: a opção de trocar o dinheiro privado por dinheiro público perfeitamente seguro e líquido, seja na forma de notas e moedas, seja na forma de reservas do banco central mantidas em determinados bancos.

O dinheiro privado que pode ser trocado por moeda do banco central a um valor nominal fixo torna-se uma reserva de valor estável. Dez dólares numa conta bancária podem ser trocados por uma nota de 10 dólares aceita como moeda de curso legal para pagar uma dívida. O exemplo pode parecer óbvio, mas encobre uma estrutura complexa: regulamentação e supervisão sólidas, mecanismos governamentais de apoio como os seguro de depósitos e a função de emprestador de última instância, bem como o lastro parcial ou integral em reservas do banco central.

Além disso, a moeda emitida pelo setor privado torna-se um meio de pagamento eficiente, na medida em que pode ser trocada por moeda do banco central. Os dez dólares na conta da Ana no Banco A podem ser transferidos para a conta do Roberto no Banco B porque nesse processo são trocados por moeda do banco central – um ativo de confiança que ambos os bancos detêm e podem negociar. Assim, esse dinheiro emitido por entidades privadas se torna interoperável. E isso, por sua vez, estimula a concorrência – uma vez que Ana e Roberto podem manter dinheiro em diferentes bancos e mesmo assim efetuar pagamentos entre si – e, por conseguinte, a inovação e a diversidade de modalidades efetivas de dinheiro.

Em suma, a opção de troca por moeda do banco central é essencial para a estabilidade, interoperabilidade, inovação e diversidade da moeda emitida por entidades públicas, seja em contas bancárias ou outros meios. Um sistema formado unicamente por moeda de emissão privada seria muitíssimo arriscado. E um composto por moeda emitida exclusivamente pelo banco central poderia perder inovações importantes. Cada forma de dinheiro tira partido das características da outra, resultando no sistema monetário dual que temos hoje – um equilíbrio proveitoso para a sociedade.

Na era digital, a moeda do banco central enfrentará pressões

E o que será desse sistema no futuro, quando estivermos completamente imersos na era digital ? Será que as moedas digitais emitidas pelos bancos centrais serão suficientemente atrativas para suplantar as moedas de emissão privada? Ou ainda deixarão espaço para a inovação vinda do setor privado? Muito depende da capacidade e disposição de cada banco central para inovar de forma constante e significativa. Acompanhar o ritmo dos avanços tecnológicos, a rápida evolução das necessidades dos usuários e as inovações do setor privado não é uma tarefa fácil.

As moedas digitais dos bancos centrais podem ser comparadas a um smartphone e seu sistema operacional. Num nível elementar, são uma tecnologia de liquidação que permite a armazenagem e transferência de dinheiro, assim como os bits que transitam entre o processador, a memória e a câmera de um telefone celular. Noutro nível, são uma forma de dinheiro, com funcionalidades e feições específicas, da mesma forma que um sistema operacional.

Assim, os bancos centrais teriam que se aproximar mais dos modelos da Apple ou Microsoft para manter suas moedas digitais na vanguarda da tecnologia e nas carteiras dos usuários como forma predominante e preferida de dinheiro digital.

A inovação na era digital é infinitamente mais complexa e rápida do que a atualização dos elementos de segurança nas cédulas. Por exemplo, as moedas digitais dos bancos centrais podem, a princípio, ser administradas a partir de uma base de dados central, embora possam migrar para livros-razão distribuídos (registros sincronizados mantidos e atualizados automaticamente ao longo de uma rede) com o amadurecimento da tecnologia, e um livro-razão pode ser rapidamente substituído por outro quando houver avanços significativos. Os celulares e sistemas operacionais também recebem atualizações importantes pelo menos uma vez por ano.

Além disso, é provável que as necessidades e expectativas dos usuários evoluam de forma muito mais rápida e imprevisível na era digital. A informação e os ativos podem migrar para os livros-razão distribuídos, exigindo que o dinheiro seja monetizado na mesma rede. A transferência de dinheiro pode assumir formas completamente novas, talvez automaticamente por meio de chips instalados em produtos de uso diário. Essas necessidades podem exigir novas características do dinheiro e, assim, reformulações frequentes da sua arquitetura e mais diversidade. É pouco provável que o dinheiro de hoje ou de amanhã satisfaça as necessidades de depois de amanhã.

A pressão virá também do lado da oferta. O setor privado continuará a inovar. Surgirão novos mecanismos como eMoney e stablecoin. Conforme aumente a demanda por esses produtos, as autoridades regulatórias farão um esforço para conter os riscos. Por fim, virá a pergunta inevitável: como será a interação entre essas formas de dinheiro e as moedas digitais dos bancos centrais? Elas terão vida própria ou algumas delas serão integradas num sistema monetário dual em que os produtos privados e dos bancos centrais se complementam?

A parceria com o setor privado ainda é possível

Acompanhar o ritmo dos avanços tecnológicos, a evolução das necessidades dos usuários e a concorrência do setor privado será um desafio para os bancos centrais. Contudo, eles não precisam fazer isso sozinhos.

Em primeiro lugar, a moeda digital dos bancos centrais pode ser concebida de modo a estimular o setor privado a adicionar a ela suas próprias inovações, da mesma forma que os criadores de aplicativos acrescentam funcionalidades atraentes aos telefones celulares e seus sistemas operacionais. Ao acessar um conjunto aberto de comandos (“interfaces de programação de aplicações”) uma comunidade ativa de desenvolvedores poderia expandir as possibilidades de uso das moedas digitais dos bancos centrais, muito além de simples carteiras digitais. Por exemplo, poderiam facilitar a automatização dos pagamentos, de modo que uma remessa de produtos fosse paga na entrega, ou criar uma função de busca para a transferência de dinheiro entre amigos usando apenas um número de telefone. O ponto nevrálgico seria a verificação desses serviços adicionais para garantir sua total segurança.

Em segundo lugar, alguns bancos centrais poderiam até permitir a coexistência de outras formas de dinheiro digital – como no caso de sistemas operacionais paralelos – potencializando a funcionalidade de liquidação e a estabilidade de suas próprias moedas digitais. Isso abriria as portas para inovações mais rápidas e a diversidade de produtos. Por exemplo, uma moeda digital poderia sacrificar a velocidade de liquidação para oferecer aos usuários maior controle sobre a automatização dos pagamentos.

Essa nova forma de dinheiro digital seria uma reserva de valor estável? Sim, se puder ser trocada por moeda do banco central (digital ou não) a um valor nominal fixo. Isso seria possível caso fosse plenamente garantida pela moeda do banco central.

E essa forma de dinheiro digital seria um meio de pagamento eficiente? Mais uma vez sim, já que a liquidação seria imediata em qualquer rede de dinheiro digital, assim como ocorre entre contas num mesmo banco. E as redes seriam interoperáveis na medida em que um pagamento do provedor de dinheiro digital da Ana para o provedor de dinheiro digital do Roberto seria liquidado com uma movimentação correspondente de moeda do banco central, como ocorre hoje no sistema dual.

Essa modalidade de dinheiro digital (que já chamamos de moeda sintética ) poderia coexistir com a moeda digital dos bancos centrais. Isso exigiria um mecanismo de licenciamento e um conjunto de normas para cumprir os objetivos de política pública, como a resiliência operacional, a proteção do consumidor, a conduta e contestabilidade dos mercados, a privacidade de dados e mesmo a estabilidade prudencial. Ao mesmo tempo, a integridade financeira poderia ser assegurada por meio de identidades digitais e políticas de dados complementares. Formar parcerias com os bancos centrais exige um grau elevado de conformidade regulatória.

Um sistema para a posteridade

Se e quando os países decidirem utilizar moedas digitais dos bancos centrais, devem considerar como potencializar a contribuição do setor privado. O sistema monetário dual do presente pode ser se estender à era digital. As moedas dos bancos centrais – juntamente com o controle, a regulamentação e a supervisão – continuarão a ser essenciais para ancorar a estabilidade e a eficiência do sistema de pagamentos. E a moeda emitida por entidades privadas pode complementar essa estrutura por meio da inovação e da diversidade – talvez até mais do que hoje. A posição a ser ocupada pelos bancos centrais nesse contínuo entre a participação do setor público e do setor privado no fornecimento de moeda irá variar de país para país e, em última instância, dependerá das preferências, da tecnologia e da eficiência da regulamentação.

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Tobias Adrian é o Conselheiro Financeiro e Diretor do Departamento de Mercados Monetários e de Capitais do FMI. Nessa função, dirige o trabalho do FMI relacionado com a supervisão do setor financeiro, as políticas monetária e macroprudencial, a regulação financeira, a gestão da dívida e os mercados de capitais. Antes de ingressar no FMI, foi Vice-Presidente Sênior do Federal Reserve Bank de Nova York e Diretor Adjunto do Grupo de Estudos e Estatística. Lecionou na Universidade de Princeton e na Universidade de Nova York e é autor de numerosos artigos em publicações especializadas de economia e finanças, como American Economic Review e Journal of Finance. Seus estudos concentram-se nas consequências agregadas da evolução dos mercados de capitais. Tem um doutorado do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), um mestrado da London School of Economics, um diploma da Universidade Goethe de Frankfurt e um mestrado da Universidade Dauphine de Paris.

Tommaso Mancini-Griffoli é Subchefe de Divisão no Departamento de Mercados Monetários e de Capitais do FMI, encarregado de questões de política monetária, bancos centrais e fintechs. Já assessorou autoridades nacionais e publicou numerosos estudos sobre questões relacionadas a políticas monetárias não convencionais, política monetária e estabilidade financeira, efeitos secundários, regimes e intervenções cambiais, modelos e previsões, a evolução dos quadros de política monetária, e fintechs e moedas digitais. Antes de ingressar no FMI, foi economista sênior na Divisão de Estudos e Política Monetária do Banco Nacional da Suíça, onde assessorou o conselho de administração nas decisões trimestrais de política monetária. Trabalhou também em entidades do setor privado, como Goldman Sachs, Boston Consulting Group e startups de tecnologia no Vale do Silício. É doutor pelo Graduate Institute de Genebra e diplomou-se também na London School of Economics e Universidade de Stanford.