Os juros estão baixos, e “mais baixos por mais tempo” passou a ser quase um mantra entre os responsáveis pelas políticas públicas, reguladores e outros observadores do mercado. Mas taxas de juros negativas geram uma série de perguntas completamente novas.
Após oito anos de experiência com políticas de taxas de juros negativas, o ceticismo inicial (pagar juros aos tomadores e não aos poupadores sem dúvida foi um fato inédito) revelou-se, em grande medida, equivocado. Os dados analisados até hoje indicam que as políticas de taxas de juros negativas surtiram efeito.
Desde 2012, vários bancos centrais introduziam políticas de taxas de juros negativas. Os bancos centrais da área do euro, da Dinamarca, do Japão, da Suécia e da Suíça recorreram a essas políticas em resposta a taxas de inflação persistentemente abaixo das metas (a maioria dos bancos centrais fixa metas como parte de seu mandato mais amplo de manutenção da estabilidade de preços, como forma de apoiar o emprego e o crescimento econômico). Esses bancos centrais estavam também reagindo a uma “taxa de juros real neutra” muito baixa – a taxa de juros real na qual a política monetária não é nem contracionista nem expansionista. Essa medida refletiu a dificuldade dos bancos centrais em estimular a inflação, mesmo após terem empurrado as taxas de juro para zero.
Os efeitos da crise da Covid-19, numa conjuntura em que muitos bancos centrais enfrentam uma margem de ação limitada, renovaram o interesse nas políticas de taxas de juros negativas.
De modo geral, essas políticas ajudaram a flexibilizar as condições financeiras e, nesse processo, provavelmente apoiaram o crescimento e a inflação. Contudo, as taxas de juros negativas ainda são uma escolha politicamente controversa, em parte porque muitas vezes são mal compreendidas.
Território desconhecido
Quando foram introduzidas, muitos questionaram se as políticas de taxas de juros negativas teriam o efeito desejado.
Havia temores quanto aos riscos, uma vez que essa medida nunca havia sido testada e era, em muitos aspectos, contraintuitiva. Será que os bancos, as famílias e as empresas movimentariam enormes somas em dinheiro vivo em resposta às novas políticas, o que enfraqueceria a ligação entre as taxas de juros dos bancos centrais e outras taxas de juros? Será que os bancos hesitariam em baixar os juros dos empréstimos, ou mesmo diminuiriam a oferta de crédito, para impedir a queda dos lucros? Será que as políticas de taxas de juros negativas produziriam um estímulo monetário expressivo?
Surgiram também preocupações quanto aos efeitos colaterais dessas novas políticas. As principais delas estavam ligadas aos riscos para a estabilidade financeira em função da menor lucratividade bancária e o medo de perturbações no funcionamento dos mercados financeiros e nos fundos dos mercados monetários.
Com base nos dados analisados até hoje, concluiu-se que esses temores, na sua maioria, não se materializaram. As políticas de taxas de juros negativas se mostraram capazes de estimular a inflação e a produção quase tanto quanto medidas comparativas, como os cortes nas taxas de juros ou outras medidas monetárias não convencionais. Por exemplo, alguns autores estimam que as políticas de taxas de juros negativas foram até 90% tão eficazes quanto as políticas monetárias convencionais. Elas também provocaram uma redução das taxas dos mercados monetários, dos rendimentos de longo prazo e dos juros bancários.
As taxas de juros dos depósitos de clientes corporativos caíram mais do que as dos depósitos no varejo, porque o custo de passar a utilizar dinheiro vivo é mais elevado para as empresas do que para os indivíduos. Os volumes de empréstimos bancários aumentaram de modo geral. E como nem os bancos nem seus clientes passaram a utilizar dinheiro vivo, é provável que as taxas de juros possam continuar a avançar em território negativo antes que isso ocorra.
Tudo bem por enquanto
Até o momento, os possíveis efeitos adversos sobre os lucros bancários e a estabilidade financeira têm sido limitados.
De modo geral, os lucros bancários não se deterioraram, embora alguns bancos mais dependentes dos depósitos para a captação de recursos – bem como bancos menores e mais especializados – tenham sentido um impacto maior. Os grandes bancos aumentaram a disponibilidade de crédito, introduziram taxas sobre as contas de depósitos e colheram ganhos de capital. Naturalmente, é possível que a ausência de um impacto significativo sobre a lucratividade bancária reflita, sobretudo, efeitos de curto prazo que poderiam ser revertidos com o tempo. E poderiam emergir outros efeitos colaterais caso as taxas de juros dos bancos centrais tornem-se ainda mais negativas.
Os fundos do mercado monetário em países que adotaram políticas de taxas de juros negativas não entraram em colapso. E, mesmo que a atual conjuntura de “juros baixos por muito tempo” gere preocupações significativas para a estabilidade financeira (uma vez que conduz a uma busca por rendimentos ou a riscos excessivos assumidos pelas instituições financeiras), as políticas de taxas de juros negativas, por si sós, não parecem ter exacerbado o problema. Por exemplo, a assunção de riscos pelos bancos não parece ter aumentado de forma excessiva .
À luz desses dados, por que é que outros bancos centrais não aderiram a essa tendência? As razões provavelmente estão ligadas a características nacionais ou institucionais específicas. As restrições institucionais e jurídicas podem ter um papel a cumprir, e alguns sistemas financeiros – devido a sua estrutura ou interconexão com os mercados financeiros globais – podem ser mais propensas a sofrer efeitos colaterais adversos das políticas de taxas de juros negativas. Por exemplo, os países com muitos bancos pequenos que dependem mais dos depósitos de particulares como principal fonte de financiamento podem ser mais relutantes em adotar taxas de juros negativas.
Mesmo os bancos centrais que adotaram essa política avançaram com cautela, em geral efetuando pequenos cortes nos juros, dado o risco de que os efeitos colaterais negativos se tornem mais visíveis caso a política de taxas de juros negativas dure muito tempo, ou caso as taxas se tornem demasiadamente negativas.
Em suma, os dados analisados até o momento indicam que as políticas de taxas de juros negativas conseguiram flexibilizar as condições financeiras sem gerar preocupações significativas sobre a estabilidade financeira. Por isso, os bancos centrais que adotaram taxas negativas podem ter margem para reduzi-las ainda mais. E aqueles que ainda não o fizeram não devem descartar a opção de incluir uma política como essa em seu arsenal, mesmo que seja improvável que a utilizem.
Em última instância, dado o nível reduzido da taxa de juros neutra, cedo ou tarde muitos bancos centrais podem ser forçados a considerar políticas de taxas de juros negativas.
Este blog baseia-se no trabalho de Luís Brandão Marques, Marco Casiraghi, Gaston Gelos, Gunes Kamber e Roland Meeks.
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Luís Brandão Marques é economista sênior da Divisão de Análise da Estabilidade Financeira Mundial do Departamento de Mercados Monetários e de Capitais. Contribui para o Relatório sobre a Estabilidade Financeira Mundial e analisa diversas questões sobre políticas do setor financeiro. Anteriormente, trabalhou no Instituto do FMI para o Desenvolvimento de Capacidades, que presta formação aos servidores públicos nacionais. Lecionou na Universidade Johns Hopkins e na Universidade do Porto, e trabalhou no setor bancário corporativo português. Tem artigos publicados no Journal of Finance e Journal of Monetary Economics. Doutorou-se em Economia pela Universidade de Rochester.
Gaston Gelos é Diretor Adjunto do Departamento de Mercados Monetários e de Capitais do FMI, onde chefia a Divisão de Políticas Monetárias e Macroprudenciais. Anteriormente, ocupou vários cargos nesse departamento e no Instituto do FMI, no Departamento de Estudos, no Departamento da Europa e no Departamento do Hemisfério Ocidental, e foi representante residente do FMI na Argentina e no Uruguai. Seus estudos abrangem uma série de tópicos microfinanceiros, publicados numa ampla gama de periódicos acadêmicos. Doutorou-se pela Universidade Yale e formou-se pela Universidade de Bonn.